Solly

PRINTS

O passo da liberdade!

Nascido em Beirute, Solly Raffou Khamkhagi vive em São Paulo há mais de 4 décadas. Casado com Dorli Khamkhagi, jamais deixou de se dedicar a sua própria arte. Antes de chegar ao Brasil, Solly cursou desenho e pintura na Academia de Belas Artes do Líbano. Posteriormente vai estudar negócios no London College, Inglaterra e segue para a Itália, onde frequenta o ambiente artístico de Brera. Em 1968 chega em São Paulo e, em 1975, estuda com Juarez Magno e Valter Levy, na Galeria Documenta.

Em 1983 frequenta o ateliê livre de escultura, orientado por Domenico Calabrone e Elvio Becheroni. Solly é um artista de formação e trajetória tradicionais.

Até aí não seria novo perceber que, ele, como tantos pintores, desenhistas e escultores dedicados à arte haveriam de se manter nos cânones apreendidos da arte figurativa Moderna, de modo bastante definido pelas formas e metodologias clássicas de pintar desenhar e esculpir.

Dedicado e bem-sucedido nos negócios, ele se mantém por décadas trabalhando de modo tímido a sua carreira e o seu desenvolvimento nas artes com pintor. Mesmo experimentando a escultura é nítido que ele tem grande habilidade em desenho e pintura. Como é natural de um artista que bifurca sua atividade com outros afazeres, Solly, embora tenha alcançado relativa projeção na década de 80, mantém o silêncio e, ao mesmo, a inquietude silenciosa de quem, mesmo acreditando nos cânones aprendidos na Belas Artes do Líbano e com seus mestres no Brasil, quase em segredo, guardava sempre um desejo de liberdade que é justamente o que o faz chegar na sua questão principal, guardada por uma transformando seu presente e toda sua linguagem estética.

Hoje, aos 80 anos de idade, Solly faz uma revolução pessoal. Atinge um turning point pelo qual ninguém espera aos 80. Atravessa todas as suas barreiras internas e sociais para dar um grito de liberdade.

A mostra O passo da liberdade resulta justamente deste movimento que seria inesperado no caso de muitos artistas que, como ele, se doutrinaram pela divisão clássica e forçosamente dividida entre arte abstrata e figurativa. Uma divisão que jamais fez sentido, mas doutrinou diversas escolas de arte, impedindo a real compreensão dos fenômenos que estamos assistindo na arte contemporânea.

Um deles e, a cena do graffiti que, progredindo para os horizontes da street art, quebrou definitivamente os clichês da discussão entre figuração e abstracionismo ou mesmo o expressionismo tardio de um Arnulf Rainer, um Bacon ou, na corrente oposta, um impressionismo matérico que repousa sobre as figuras de Giacometti. Nestes, evidentemente não existe sequestro ou divisão poética que, no caso, refere-se ao fato de serem artistas viveram cem por cento do seu tempo dedicados a produção artística.

O caso de Solly e diferente. Houveram claros limites na sua existência que o colocaram no impasse da produção criativa embora ele sempre tenha vivido o seu presente de maneira inquieta e buscado, constantemente, a arte. E por mais que sua existência, aparentemente, não tenha sido perene para a arte sua percepção jamais se desviou dela. Passados 65 anos do início de sua clássica formação no Líbano, Solly, cria, em 2018 e 2019 algumas obras, entre elas a obra “Desintegração”.

Como se o artista octogenário fosse um artista nascente, seis décadas depois de começar, ele resolve atravessar as fronteiras interiores, sociais e criativas pondo fim a sua divisão interior do modo mais inesperado para um artista da sua formação. Ao mesmo tempo, decreta o fim de suas barreiras internas e sociais se opondo frontalmente a sua formação para declamar a própria liberdade e aquilo que ele realmente acredita como artista e ser humano.

Ao invés de fortalecer os cânones da arte que aprendeu ou divagar entre frágeis escolas que, sem sair do lugar, debateram abstração e figuração, de modo muito comportado, como anteriormente, Solly salta para o mundo transfigurado da realidade brasileira e urbana que as gerações atuais tão bem identificam na street art. Não existe mais a bifurcação entre o homem e o artista. Solly atravessa a rua, olha a sociedade sem fronteiras, assume uma guerra do lado de fora que sempre o tomara por dentro, e põe fim a sua própria falta de liberdade como pintor.

De repente uma figura cai, desaparece em outras e, enfim, ressurgem em fotografias coladas sobre caóticas superfícies de pintura que dão o devido vigor ao ato de liberdade de um artista nascente. A mostra O passo para a liberdade é uma resultante deste processo. Aqui, Solly arrebenta aquele sujeito irrelevantemente seguro em pinturas com começo, meio e fim.

Previsíveis, aceitáveis, mas, ao mesmo tempo, insuportavelmente confinadas a estética domesticada e domesticável que, literalmente, desaparece quando a coragem de criar é necessária. Ele atravessou as fronteiras. E ao fazer isto aos 80 anos de idade, Solly não apenas pinta o que sempre sonhou como convida todos nós a sair do lugar cômodo no qual muitas vezes mantemos nossas vidas sem nenhuma interação maior com a nossa vida interior e a realidade que vivemos.

Do outro lado da rua que ele atravessou com coragem, está todo o oposto daquilo que ele constituiu toda uma vida em seu universo social, no qual ele cultivou a pintura de fases anteriores. Este de agora não é mais um pintor, escultor, desenhista.

Solly, de um modo totalmente jovem, cria, para o outro lado da rua um depoimento de liberdade, tanto na sua nova linguagem, quanto no ato de fazer o caminho contrário que a street art vem fazendo que é sair da rua para ocupar os museus. Solly rompe com o conforto dos próprios padrões e imerge no ambiente da arte de rua, não por uma tática qualquer, mas porque isto coincide com o anseio de liberdade que ele adiou dentro de si mesmo, por décadas.

O resultado e a ação de um homem completamente preparado em contextos sociais que equilibra em si mesmo o artista que ao invés de envelhecer no lirismo, rejuvenesceu, encontrou um caminho para si e derrubou a barreira para milhares de olhares críticos e criativos que, ainda preconceituosos, não fariam jamais o movimento que ele fez.

Em seu movimento o homem encontrou o artista e de modo indissociável os dois se uniram, efetivamente.

Exemplo na arte e exemplo na ruptura dos preconceitos, tanto quanto expressam suas obras, o percurso interior de Solly é o grande fato da mostra que vemos na A7MA.

Saulo di Tarso | artista visual, curador. Setembro de 2019.

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